Lavradores maus

 Atentai noutra parábola. Havia um homem, dono de casa, que plantou uma vinha. Cercou-a de uma sebe, construiu nela um lagar, edificou-lhe uma torre e arrendou-a a uns lavradores. Depois, se ausentou do país. Mateus 21.33
Lavradores maus, Jesus Mafa
Quando vemos imagens das fazendas no sul do Brasil ficamos orgulhosos, não é mesmo? Existem nelas algumas paisagens que parecem ser naturais de tão harmoniosas. Mas não são naturais não. Ali tem muito do trabalho humano, e que me desculpem os ecologistas, ficaram bem melhor do que antes. Mesmo com a certeza de foi Deus quem criou assim, temos que considerar que quem a deixou daquele jeito fomos nós, seres humanos. Muito do que existe ali não teria sido feito se não fizéssemos. No entanto, algumas dessas fazendas estupendas nunca foram visitadas pelos seus verdadeiros donos, e na maioria delas eles quase nunca aparecem por lá, a não ser na hora de comprar barato ou vender com muito lucro.

Se nos valermos apenas da ilustração da parábola montada por Jesus, ficará a impressão de que a coisa é assim desde que o mundo é mundo. Os empregados que, praticamente, fizeram todo o serviço ficam a mercê desta situação, sem saber se no futuro breve terão que ir ou ficar.

O curioso nesta parábola é que ela recebeu dos copistas o título de “a parábola dos lavradores maus”. Logicamente que levando em conta apenas a má intenção dos empregados contratados para transformar o ambiente inóspito em uma terra produtiva. Porém, deixando de lado um pouco o ensinamento do Reino proposto por Jesus nesta parábola, precisamos pensar no contexto em que ela estava inserida e também nos seus reflexos para a nossa realidade atual.

Se tivéssemos a ousadia de reescrevê-la com fundamentos extraídos da nossa realidade, teríamos que chamá-la de a parábola do fazendeiro omisso e o MST. Firmes na convicção de que estamos perdidos entre uma oligarquia detentora de da maioria das terras produtivas e dos movimentos que reivindicam terras pela força das armas. Tudo acontecendo por ser muito bem orquestrado por uma política que privilegia mais ainda os grandes pecuaristas, pois só se invade fazenda de quem vive exclusivamente da terra ou de inimigos políticos.

Não tenho autoridade eclesiástica e muito menos estatura teológica para afirmar que Jesus estava de olho nessas duas realidades ao contar essa parábola, mas tenho que admitir que ela se tornou ambígua em um outro contexto, porque, segundo o que se vê hoje no Brasil, se alguns pretensos lavradores agem ilicitamente, alguns donos de terra têm também a sua parcela de culpa, pelo fato de não terem qualquer apreço pela sua propriedade, principalmente porque ela representa apenas mais uma fonte de lucro, e que não merecem a sua presença.

Jesus diria que o Reino de Deus não se parece com nenhum dos dois casos, e reforçaria essa ideia com o conceito de que o Pai trabalha até agora, e que ele também trabalha. Ou seja: o reino de Deus seria hoje comparado a uma fazendo estupendamente bela e produtiva, em razão de um exaustivo trabalho conjunto de ambas as partes. Tanto daqueles que pela força das ferramentas transformam a terra, como pela participação efetiva de uma consciência superior que supre as necessidades mais prementes dos que produzem, como também dos que necessitam desta produção para viver.

A proposta de Jesus é que Reino de Deus deve ser uma terra abençoada onde essa parábola não faça o menor sentido. Mas ainda temos muito que cavar, muito a semear e muito mais ainda a cuidar dessa fazenda, pois mesmo que pareça que as partes negativas são vitoriosas, devemos acreditar sempre no juiz justo, que fará com que a realidade, por mais adversa que se apresente, não tenha e nem venha a ter a última palavra. 
19 maio 2015

Restauração de sonhos II

Sonhos abstratos, Terry Fan
A plenitude do Espírito de Deus, pelo qual se manifesta a libertação sobre toda a comunidade. “E acontecerá, depois, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões; até sobre os servos e sobre as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias. Mostrarei prodígios no céu e na terra: sangue, fogo e colunas de fumaça. O sol se converterá em trevas, e a lua, em sangue, antes que venha o grande e terrível Dia do SENHOR. E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do SENHOR será salvo; porque, no monte Sião e em Jerusalém, estarão os que forem salvos, como o SENHOR prometeu; e, entre os sobreviventes, aqueles que o SENHOR chamar” (2.28-32 ou 3.1-5).
                                          
Antecipando o que haveria de acontecer no Pentecostes cristão (At 2, ver principalmente os vv. 16-21), Joel anuncia a presença permanente do Espírito sobre todo o povo de Deus, sem distinção de idade, sexo, raça ou condição social. Assim, todas as pessoas, plenas do Espírito de Deus, se tornam profetas que anunciam o evangelho, por meio de uma prática de resistência e de celebração da esperança.

Joel conclui sua profecia com o anúncio da restauração da sorte do povo de Deus: “Eis que, naqueles dias e naquele tempo, em que mudarei a sorte de Judá e de Jerusalém” (4.1), a precariedade dará lugar à abundância; o abandono, à presença constante de Javé como refúgio; as relações sociais injustas e excludentes serão substituídas por uma nova ordem onde “velhos e jovens”, “escravos e escravas”, “filhos e filhas”, não mais serão discriminados, mas plenamente incluídos e respeitados.
Quem adquire a consciência do profeta não pode deixar de atender afirmativamente ao seu convite: “Forjai espadas das vossas relhas de arado e lanças, das vossas podadeiras; diga o fraco: Eu sou forte” (3.10 ou 4.10). As nossa ferramentas de trabalho, são as melhores armas que temos pra enfrentar as crises.

Quando esse Espírito toma conta de todo o povo de Deus, o Dia do Senhor se torna inevitável. “E há de ser que, naquele dia, os montes destilarão mosto, e os outeiros manarão leite, e todos os rios de Judá estarão cheios de águas; sairá uma fonte da Casa do SENHOR e regará o vale de Sitim” (3.18 ou 4.18).

Para reflexão e ação
A partir dos caminhos apontados pela profecia de Joel, podemos rever a nossa realidade, tentando aplicar os princípios da resistência profética com vistas à superação da nossa própria precariedade. Podemos nos perguntar, portanto:
1. Em que a nossa realidade, principalmente a dos adultos e idosos, se assemelha à do profeta Joel? (Cada um pode partilhar um pouco a respeito das suas “precariedades”).

2. Como a profecia de Joel e a experiência do pentecostes cristão pode orientar a participação dos mais idosos na Igreja e na sociedade? Qual a nossa responsabilidade como portadores da memória da libertação? Que lugar tem a experiência acumulada ao longo de toda uma vida para a orientação daqueles e daquelas que procuram saída para suas crises existenciais, econômicas e espirituais?

3. Joel fala da visão que os jovens e os velhos viriam a ter, pela inspiração do Espírito de Deus, mas pratica sua profecia a partir da visão que ele obteve a partir da história do seu povo, do conhecimento da sua própria realidade e da experiência do seu próprio dia-a-dia. Os sonhos, como as visões, são um misto de realidade e imaginação, e, na Bíblia, o sonho é a ação de Deus que traz a vida e reaviva a sabedoria acumulada. Quais são os sonhos-ação que podemos compartilhar com as novas gerações para que possamos apressar o Dia do Senhor?

As limitações da idade, como a precariedade da vida, não devem impedir a visão da novidade (o Dia do Senhor). São sonhos como esses que nos permitem superar a nostalgia passiva. É assim que podemos exercitar uma memória que valorize o presente e nos permita enxergar o futuro como bênção. O sonho vence o medo, o imobilismo, e supera a rotina e a falta de criatividade. No Pentecostes, todas as idades são chamadas a participar do projeto de Deus rumo ao Dia do Senhor.


Sugestão de leitura (esta reflexão deve muito de sua inspiração ao texto abaixo):
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Como ler o livro de Joel. São Paulo: Paulus, 1998.
18 maio 2015

Restauração de sonhos I

O Pentecostes do profeta Joel
O sonho de Salomão, Luca Giordano
Texto do rev. Luiz Carlos Ramos.

Joel significa “Javé é Deus” (cf. 2.7,24 e 4.17) e sua preocupação final, como profeta, tem relação com a precariedade da vida imposta à sociedade do seu tempo e sua relação com esse Deus. No tempo do profeta, por volta do século IV a. C., o povo de Deus vivia sob o imperialismo pós-exílico. Ciro, o rei persa, triunfa sobre a Babilônia, que havia deportado os judeus, e atende ao clamor da comunidade de Judá, permitindo o retorno dos exilados (538 a. C.), e permite ainda que sejam devolvidos os utensílios do Templo de Jerusalém, que havia sido espoliado. Mas isso não implicou em muitas vantagens para o povo.

Por essa época, Joel, o profeta, faz uma viagem de reconhecimento pelo seu país. O que o profeta encontrou em seu itinerário está relatado no primeiro capítulo do seu livro: videiras secas (1.7); campos assolados, cereal destruído e olivais murchos (v. 10); colheitas de trigo e cevada perdidas (v. 11); árvores frutíferas secas (v. 12); sementes secas, silos roubados, armazéns demolidos (v. 17); gado gemendo, bois e ovelhas padecendo por falta de pasto (v. 18); pastagens consumidas pelo fogo (v.19); rios secos e estepes devoradas pelo fogo (v. 20).

A palavra que melhor define a situação do povo é precariedade: escassez de recursos, instabilidade econômica e psicológica, debilidade física e moral, etc. Isso tanto em sentido individual como comunitário. Tudo porque, submetido a um rei e a leis estrangeiras, o povo de Deus se descobre como pequena etnia num império multirracial sem autonomia para dirigir seu destino. Mais lamentável, ainda, é o fato de que parte dessa dominação se dava mediante o sacerdócio de Jerusalém, comprometido com o império persa.

O povo tem que pagar altas taxas e lhe são cobrados pesados impostos. Este é só o primeiro estágio de uma crise que se agravaria ainda mais, pois, pouco a pouco, esse sistema tributarista vai cedendo lugar ao escravismo. À medida que os recursos escasseiam e que não se pode mais honrar os compromissos tributários, resta ao povo pagar com trabalho e seus próprios corpos.

É para essa realidade que Joel dirige a sua profecia. Pois, pior do que lidar com as crises é tentar fugir delas. Joel desafia o seu povo a enfrentar essa situação ao apontar para o caminho que leva à ruptura com a crise e o desespero. O profeta mostra que a calamidade não é ponto final, mas ponto de partida para a reconquista da dignidade.

São quatro as “ferramentas” apontadas por Joel que devem ser usadas para confrontar a crise:
A memória dos anciãos, que eram a liderança do povo (1.2-3): “Ouvi isto, vós, velhos, e escutai, todos os habitantes da terra: Aconteceu isto em vossos dias? Ou nos dias de vossos pais? Narrai isto a vossos filhos, e vossos filhos o façam a seus filhos, e os filhos destes, à outra geração.” Joel apela para aqueles que guardam a lembrança dos acontecimentos importantes da história do povo, pois são eles os portadores da memória de libertação. A crise começa a ser superada quando os mais velhos colocam a sua experiência a serviço da comunidade.

A transformação do coração, isto é, a conversão interior e profunda que implica numa nova consciência da forma do relacionamento com Deus e com o próximo. “Ainda assim, agora mesmo, diz o SENHOR: Convertei-vos a mim de todo o vosso coração; e isso com jejuns, com choro e com pranto. Rasgai o vosso coração, e não as vossas vestes, e convertei-vos ao SENHOR, vosso Deus, porque ele é misericordioso, e compassivo, e tardio em irar-se, e grande em benignidade, e se arrepende do mal” (2.12-13). A superação da crise tem de ser superada por cada um de corpo e alma, com a emoção e com a inteligência.

A celebração do Dia do Senhor, a respeito do qual o profeta faz coro com Amós, Sofonias, Abdias, Zacarias, Malaquias, Isaías, Jeremias e Ezequiel. Principalmente para Joel, o Dia do Senhor se refere ao castigo contra os pecados de Israel, mas que, havendo conversão, assume a forma de felicidade e de esperança. “Quem sabe se não se voltará, e se arrependerá, e deixará após si uma bênção, uma oferta de manjares e libação para o SENHOR, vosso Deus?” (2.14). Isso indica que há solução para a calamidade, a crise não tem a última palavra; “talvez”, “quem sabe”, Deus mude o castigo em bênção. A sorte do povo está nas mãos de Deus. O Dia do Senhor vem, na medida em que o povo de Deus caminha em sua direção. (continua)
17 maio 2015

O que é PIEDADE?

Cristo nosso pastor, Bertram Poole
A piedade é, para os mais modernos, a fidelidade aos deveres religiosos, muitas vezes reduzidos aos exercícios de piedade. Na Bíblia, a piedade se irradia mais amplamente: engloba também as relações do homem com os outros homens.

Primeiro Testamento
A piedade nas relações humanas. Em hebraico, a piedade (hesed) designa primeiramente a relação mútua que une familiares, amigos e aliados. É uma afeição que implica uma ajuda mútua eficaz e fiel. A expressão fazer hesed indica que a piedade se manifesta por atos. No binômio hesed/emet, piedade-fidelidade, os dois termos se compenetram; o segundo designa uma atitude interior sem a qual a bondade, designada pelo primeiro, não será perfeita. Para os LXX, que traduzem hesed por eleos (compaixão), o essencial da piedade parece ser a bondade compassiva.

A piedade nas relações com Deus. Este vínculo humano é tão forte que a hesed possibilita compreender o vínculo que Deus, pela aliança, estabeleceu entre si e seu povo. À piedade de Deus, isto é, ao seu amor misericordioso por Israel, seu primogênito, deve corresponder uma outra piedade, isto é, a afeição filial, que será expressa pela obediência fiel e pelo culto. Desse amor praticado para com Deus deve decorrer um amor fraternal entre os homens, imitação da bondade de Deus e de sua solicitude para com os pobres. Por isso, para definir a verdadeira piedade, Miquéias a une à justiça, ao amor e à humildade: Mq 6.8 - o que é bom e que é o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus.

Essa é a definição dos profetas e dos sábios. Para Oséias, a piedade não está nos ritos, mas no amor que os anima, inseparável da justiça e da fidelidade à Lei. Para Jeremias, Deus se nos dá como modelo de piedade e de justiça. Algumas vezes vemos que a piedade está comprometida quando os pobres são oprimidos e se viola a justiça. Nos Salmos, o culto do homem piedoso (hb - hasid; gr - hosios ou eusebes) se exprime num louvor amoroso, confiante e alegre que engrandece a piedade de Deus. Contudo, esse culto não é bem aceito se não estiver unido à fidelidade. Deus concede a sabedoria aos homens piedosos que não separam culto e caridade, e eles tiram proveito de todos os bens criados por Deus.

É essa piedade integral que, no tempo dos Macabeus, anima os Assideus (de hasidim: piedoso): eles lutam pela sua fé até à morte; a piedade que os torna fortes está certa da ressurreição. Tal é também a piedade mais forte que tudo cuja vitória no Juízo final a Sabedoria canta a oposição justo/ímpio. Desta piedade estará dotado o Messias que estabelecerá aqui na terra o Reino de Deus.

Segundo Testamento
A piedade de Cristo. A expectativa dos que desejavam servir a Deus na piedade (hosiotes) e na justiça é satisfeita pela piedade eleosde Deus que envia o Cristo. Cristo é por excelência o piedoso. Sua piedade filial o faz cumprir em tudo a vontade de Deus, seu Pai; ela o leva a lhe oferecer um culto perfeito; ela inspira a ardente prece de sua agonia e a oferenda do doloroso sacrifício pelo qual ele nos santifica; sendo, assim, o Sumo Sacerdote piedoso de que precisávamos, ele é ouvido por Deus por causa de sua piedade. Por isso o mistério de Cristo é chamado “o mistério da piedade” (l Tm 3,16), nele a piedade de Deus realiza o seu desígnio de salvação; nele a piedade do cristão tem sua fonte e seu modelo.

A piedade do cristão. Deus já considerava agradáveis os homens de toda nação que, por suas preces e suas esmolas animadas pelo temor de Deus, participavam da piedade ju­daica em seus dois elementos, o culto divino e a prática da justiça; tais são o judeu Simeão, os homens vindo a Jerusalém para Pentecostes, o centurião Cornélio. Essa piedade é renovada por Jesus e pelo dom do Espírito. Notamos nos Atos dos Apóstolos alguns desses homens piedosos eulabes, como Ananias ou os cristãos que vêm sepultar Estevão. Segundo a linguagem paulina, o culto deles é agora animado por um espírito filial para com Deus, e a justiça deles é a da fé que opera pela caridade. Essa é a piedade (hosiotes) do homem novo, a verdadeira piedade cristã que Paulo contrapõe às práticas vãs de uma piedade falsa e meramente humana; por ela rendemos a Deus um culto agradável, com religião eulabeia e temor.

Nas epístolas pastorais e na segunda epístola de São Pedro, a piedade está entre as virtudes fundamentais do pastor, do homem de Deus; ela é necessária também a todo cristão. Sublinham-se dois de seus aspectos. Primeiramente, ela liberta do amor ao dinheiro; ao contrário da falsa piedade ávida de lucros, ela se contenta com o necessário, e seu lucro é esta liberdade mesma. Em segundo lugar, ela dá a força para suportar as perseguições que são o quinhão daqueles que têm a piedade de Cristo por modelo. Sem esse desprendimento e sem essa constância, não há senão aparências de piedade. À verdadeira piedade são prometidos o socorro de Deus nas provações desta vida e a vida eterna.

Assim compreendida, a piedade designa enfim a vida cristã com todas as suas exigências; para corresponder ao amor daquele que é o único Piedoso, o cristão deve imitá-lo e com isso revelar aos seus irmãos a fisionomia do Pai celeste.

Fonte: Vocabulário de Teologia Bíblica - Vozes - 1984
16 maio 2015

Nos rastros do dízimo I

Levanto a mão ao Senhor, o Deus Altíssimo, 
o que possui os céus e a terra, 
e juro que nada tomarei de tudo o que te pertence,
nem um fio, nem uma correia de sandália.
- Gênesis 14.22-23 -
O encontro de Abraão e Melquisedeque, Rubens 
A prática de separar a décima parte do produto da terra para Deus foi introduzida em Israel pela lei de Moisés, outorgada no deserto, quando suas doze tribos caminhavam em direção à terra prometida, após sua libertação do Egito. Entretanto, a essa altura, ela já era muito difundida entre os povos da antiguidade, e era executada de diversas maneiras, de acordo com as diferentes épocas e locais, sempre vinculadas à situação social específica vivenciada em cada momento. A própria lei de Moisés, encontrada nos livros de Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, pressupõe diferentes contextos.

A bíblia até descreve Melquisedeque, sacerdote do Deus Altíssimo, rei de Salém, recebendo o dízimo muito tempo antes, do próprio Abrão, que passaria a chamar-se Abraão, o avô de Israel, cujos filhos dariam origem às doze tribos que constituíram o povo que herdou seu nome. Neste episódio, o que estava em questão era o destino que aquele que viria a ser o pai da fé daria a todos os recursos, materiais e humanos, sobre os quais ele detinha o controle naquele momento, não apenas ao seu dízimo.

O que acontecia quando apareceu o tal rei de Salém, de justiça, ou de paz, conforme as interpretações aceitas na época da epístola aos Hebreus? Sodoma havia sido saqueada pelo rei Quedoriaomer, que se apossara igualmente dos bens de Ló, sobrinho de Abrão, que lá vivia. Este apressou-se em socorrer o filho de seu irmão, recuperando seus bens e o mais que estava em poder do saqueador, inclusive os cativos. Foi então que apareceu o sacerdote, que trouxe pão e vinho e bendisse Abrão pelo Deus Altíssimo, que possui os céus e a terra; e este de tudo lhe deu o dízimo.

Quando o rei de Sodoma solicitou que Abrão lhe devolvesse os sodomitas que resgatara, concedendo que ele ficasse com os bens recuperados, recebeu a seguinte resposta: Levanto a mão ao Senhor, o Deus Altíssimo, o que possui os céus e a terra, e juro que nada tomarei de tudo o que te pertence. Apenas reteve o que os rapazes comeram e o quinhão dos homens que o ajudaram no resgate. Não quis ficar rico daquela maneira. Portanto, a Ló, o que era de Ló; a Deus, o que era de Deus; ao rei de Sodoma, o que lhe pertencia; e aos servidores, o justo pagamento.

O autor da epístola aos Hebreus também percebeu nesta passagem uma revelação muito mais importante do que a simples observação da lei do dízimo por um homem piedoso. Ora, este homem era o próprio ancestral que daria legitimidade ao sacerdócio que seria conferido a seus descendentes, os levitas, com a conseqüente autoridade para receber qualquer bem consagrado a Deus. Então, quem era esse, sem pai, sem mãe, sem genealogia; que não teve princípio de dias, nem fim de existência, a quem ele pagou o dízimo antes mesmo que o sacerdócio fosse instituído? Hebreus descobriu em tal personagem a ordem sacerdotal do próprio Cristo: constituído não conforme a lei de mandamento carnal, mas segundo o poder de vida indissolúvel. ... santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores e feito mais alto do que os céus, que não tem necessidade, como os sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, primeiro, por seus próprios pecados, depois, pelos do povo.


Referências bíblicas:
Gênesis 14.5-24; Hebreus 7.
15 maio 2015

João XV


Um

 ...a fim de que todos sejam um;
e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti,
também sejam eles em nós.
- João 17.21 -

Antes de iniciar sua dolorosa caminhada em direção à cruz, Jesus teve uma longa conversa com seus discípulos e depois levantou os olhos ao céu e disse as palavras do capítulo 17 do evangelho de João, conhecidas como a oração sacerdotal. O versículo transcrito acima são parte dela e tem servido como estímulo a um grande número de denominações para estimular práticas que expressem a unicidade da igreja em todo o mundo. Entretanto a abrangência dessa prece é muitíssimas vezes maior.

Ele orava a favor de seus discípulos e, a certa altura, observou: não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra. Expressou também o modelo dessa unidade: como és tu em mim e eu em ti. Os pais costumam desejar que seus filhos sejam unidos entre, mas os rogos de Jesus foram ainda mais profundos: sejam eles em nós.

A unicidade entre o Pai e o Filho, à qual são conclamados a se integrar os discípulos deste e os que viessem a crer por intermédio deles, está afirmada nos primeiros versículos do evangelho: o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus... Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. E o próprio Filho a confirmaria de diversas outras formas enquanto durou sua missão neste mundo, chegando a afirmá-la com todas as letras: Eu e o Pai somos um.

Entretanto, ao ouvirem essas palavras, novamente pegaram os judeus em pedras para lhe atirar. Jesus perguntou-lhes por qual de suas obras o apedrejavam. Eles retrucaram que procediam daquela maneira não pelas suas obras, que até reconheciam como boas, mas pelo que ele dizia de si mesmo. Já que era assim, Jesus encerrou a conversa conclamando-os a crerem então nas obras, para que possais saber e compreender que o Pai está em mim, e eu estou no Pai.

O pedido de Jesus ao Pai, para que os crentes fossem um neles, visava o mesmo objetivo de sua missão: para que o mundo creia que tu me enviaste. E os homens em geral reagem hoje mais ou menos como aqueles judeus, quando as igrejas os convidam para comparecerem aos seus salões a fim de experimentarem as maravilhas da ação divina: quando não hostilizam ou debocham, nem chegam pelo menos a levar a sério. Mas quando algo realmente libertador acontece, o próprio mundo reconhece que, por trás, com certeza, está a mão de Deus, sem se importar muito com os protagonistas humanos.

                                                                                                                                      
Referências bíblicas:
João 1.1-3; 10.30-38; 15.1-6
14 maio 2015

Não a toda forma de suborno

Tudo isso lhe darei se, prostrado, me adorar. O Diabo a Jesus (Mateus 4.9)
Tentação de Cristo, Rubens
Texto do rev. Jonas Rezende

Há um momento culminante, na tentação de Jesus relatada no Evangelho, em que o mundo lhe é oferecido, desde que ele abandone o Bem e a vida centralizada em Deus. Mas o Cristo rejeita a insinuação, de forma enérgica e radical: “Retire-se, Satanás, porque está escrito — Ao Senhor seu Deus você adorará, e só a ele dará culto.”

Você bem sabe que todos nós temos também as nossas tentações. O convite malicioso para que mudemos de itinerário; deixemos de agir eticamente; desfiguremo-nos; vendamos, como Esaú, o direito de primogênito por um prato de lentilhas... O deserto da tentação pode ser fértil, como nos lembra D. Hélder Câmara, desde que sejamos alimentados por essa ânsia insubornável de ser —, se não nos trairmos diante dos diferentes acenos sedutores. É preciso então atravessar o deserto sem concessões imorais, acomodações deformadoras. Jesus conseguiu. Muitos conseguem. Por que não podemos também?

Num dos mais escuros momentos da História humana, na Alemanha nazista, um pastor escreveu: “Os cristãos alemães terão de enfrentar a terrível alternativa de ajudar a derrota de sua nação, a fim de que possa sobreviver a civilização cristã, ou ajudar a vitória desta mesma nação e, consequentemente, a destruição de nossa civilização. No que me toca, já sei qual dos dois termos escolher.” E o pastor Dietrich Bonhoeffer escolhe a deslealdade a seu próprio país; participa de um complô para destruir Adolf Hitler, o que lhe vale a forca, para ser fiel a valores maiores de toda a humanidade.

Creio que podemos perder nossa identidade num imoral jogo de cintura. Os desleais, os malditos muitas vezes estão certos. O apóstolo Pedro e seus companheiros mostram que entendem esta verdade quando afirmam: “Importa, antes, obedecer a Deus que aos homens.” E Jesus Cristo é categórico:
Ai de você quando todos disserem bem a seu respeito. 
13 maio 2015


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